Metafilosofia II: filosofia como prática de esclarecimento


June 20, 2022

Eu quero continuar o assunto que eu comecei na entrada anterior. Acredito haver boas razões para rejeitar a visão tradicionalista da filosofia como uma análise conceitual a priori (isto é, sem nenhum conteúdo empírico). Claro, a alternativa é pensar a filosofia como uma disciplina empírica. Sem mais qualificações, no entanto, corre-se o risco de fundir filosofia e ciência, e é claro que mesmo o filósofo mais bem informado empiricamente ainda não é um cientista. Seria importante, então, explicar o que há de diferente entre a filosofia e as demais ciências—mas sem criar uma cisão intransponível que as separe definitivamente. Minha ideia, nesse sentido, é pensar a filosofia como uma prática de esclarecimento.

Antes de entrar na noção específica de prática de esclarecimento, eu quero focar na noçào anterior, a própria ideia de prática. Pensar a filosofia como um tipo de prática tem certas implicações interessantes. Uma delas é enfatizar o caráter normativo, porém contingente da filosofia. Outra é a possibilidade de entender como variações situacionais podem afetar a filosofia de lugares e de períodos diferentes. Uma terceira vantagem é a abertura para práticas próximas se interrelacionarem. Eu vou tentar explorar essas ideias brevemente aqui.

Começando pela normatividade. Esse conceito é tipicamente associado à ética, remetendo às maneiras moralmente corretas de agir. No entanto, eu estou pensando em uma concepção mais geral de normatividade, uma noção que diz respeito à maneira correta, mas não necessariamente moralmente correta, de fazer algo. O ponto crucial aqui é que toda prática é normativa, isto é, orientada por certos parâmetros que precisam ser respeitados para que uma instância particular dessa prática possa ser considerada correta. Podemos citar vários exemplos, mas eu vou ficar com os meus tradicionais exemplos de culinária e de prática esportiva. Existe uma maneira certa de fazer um risotto: há tipos de arroz específicos que você deve usar, uma ordem para colocar os ingredientes na panela, uma proporção de vinho que você deve colocar para um tanto de arroz, um tanto de tempo que você mexer até o arroz soltar amido suficiente para ficar cremoso, etc. Não respeitando esses parâmetros, essas normas, você vai fazer um risotto errado. Seu prato pode até ficar com um gosto bom—é improvável, já que esse conjunto de técnicas foi historicamente selecionado pelo sucesso—mas não vai ser o modo certo de fazer risotto. De maneira semelhante a prática de um exercício também é circunscrita por normas, isto é, certos parâmetros que indicam, com alguma flexibilidade, como executar uma ação com sucesso. Quando eu aprendi a lutar boxe há muitos anos, a primeira lição foi caminhar para cima e para trás mantendo a distância adequada entre os pés (o que nós chamamos de base). Manter a base é absolutamente fundamental para executar ações mais complexas, como golpes, defesas e esquivas, porque, sem a base, o lutador pode facilmente se desequilibrar. Para manter lutar boxe corretamente, você deve manter a base,  e isso implica um modo específico de caminhar para trás e para os lados, bem como a manutenção dos seus pés em ângulos específicos. Há lutadores que subvertem essa e outras normas em maior ou menor grau, e isso leva a certas maneiras sui generis de lutar que podem ser muito bem sucedidas. Mas também há casos que decididamente não são a maneira certa de lutar. Aqui, assim como no caso do risotto, trata-se de uma questão de grau: quebrar algumas regras pode ser interessante, mas também pode colocar o praticante fora do domínio próprio daquela prática específica. Se você coloca creme de leite no risotto, você não está mais fazendo risotto. Se você chuta o seu adversário ou morde fora a orelha dele, você não está mais lutando boxe.

Meu ponto aqui é que a filosofia, por também se tratar de uma prática, funciona de modo semelhante. Há maneiras corretas de fazer filosofia, maneiras que foram consagradas pelo seu sucesso na resolução de problemas filosóficos no passado. Aprender a fazer filosofia, assim como aprender a fazer um risotto ou a lutar boxe, é aprender a reproduzir essas técnicas, isto é agir de acordo com as normas relevantes—tanto na escrita quanto na fala. Mas, é claro, nós podemos subverter essas (quaisquer que sejam) normas de modo produtivo—pelo menos até certo ponto. Embora eu não esteja preocupado no momento com a discussão mais fina sobre quais seriam as normas distintivas da prática filosófica, é seguro afirmr que a argumentação é uma delas. Isto é, fazer filosofia corretamente requer argumentar corretamente. Mas é possível subverter essa exigência, como no caso do Tractatus de Wittgenstein, que foi escrito na forma de aforismos. Pode-se depreender uma possível argumentação prevista pelo autor a partir da análise da estrutura do texto, mas isso é muito não convencional comparado com as maneiras mais tradicionais de escrever filosofia. É claro, esse recurso vem com um preço: ganha-se em inovação, mas se perde em transparência porque não sabemos exatamente o que Wittgenstein queria de fato dizer e no que ele realmente acreditava (aliás, minha suspeita é que ninguém nunca soube). Talvez seja  possível até mesmo argumentar com outras formas de linguagem, como o cinema—embora nesse caso me parece que chegamos muito perto da fronteira que circunscreve a prática filosófica e a distingue de outras práticas, como expressão estritamente artística (sem desmerecer o valor desta). É possível argumentar dançando...? Tenho minhas dúvidas.

Outra implicação importante é o que eu chamo de contingência situacional, que pode ser tanto histórica quanto espacial. Como ilustração, considere o modo como os cubanos lutam boxe com a base invertida—isto é: a mão a mais forte, usualmente a direita, fica à a frente da guarda, enquanto o resto do mundo luta com a mão mais forte recuada. São práticas diferentes do mesmo esporte, e cada uma tem seus méritos e suas vantagens. Especula-se que o pugilato grego seja suficientemente parecido com o boxe contemporâneo para ser considerado por muitos o mesmo esporte, ou a raiz histórica dele. O que eu quero dizer com isso é que, como toda prática,  a prática filosófica também é sujeita a variações relativas ao espaço e ao tempo em que ela é realizada. Por essa razão, talvez seja impossível propor um conceito de filosofia que seja ricamente informativo e abrangente o suficiente para incluir diferentes estilos filosóficos. Penso, por exemplo, nas diferenças que parecem haver entre a filosofia africana antiga, a filosofia europeia do século XVII e a filosofia americana do século XX, para citar alguns casos. Assim como no caso do boxe, pensar a filosofia como prática permite compreender, de modo não controverso, que há maneiras diferentes de fazer filosofia (dentro de alguns limites). Elas podem ter uma raiz comum ou algumas semelhanças gerais, ainda que sejam substancialmente diferentes nos seus detalhes. Por exemplo, historiadores da filosofia encaram problemas filosóficos diferentemente do modo como filósofos naturalistas o fazem. Historiadores geralmente têm como objetivo final do seu inquérito entender o que aquele pensador quis dizer aqui ou ali, ou qual a influência desse ou daquele autor sobre aqueles outros, etc. Já na perspectiva naturalista, não é tão importante reconstruir quem disse o que ou a ligação histórica entre certas ideias, mas apresentar como elas, em relação com as descobertas científicas, permitem responder determinadas questões.

O ponto anterior suscita outra consideração cuja relevância eu já havia indicado. Pensar a filosofia como uma prática permite entender como ela conversa com outras práticas. De modo geral, as competências necessárias para realizarmos determinadas tarefas são muito frequentemente necessárias para outras tarefas próximas. Assim, a argumentação, a análise crítica e o questionamento, apesar de serem centrais à filosofia, não são únicos a ela. Eu também penso a expressão e a criatividade como competências que, apesar de serem muitas vezes ignoradas por algumas escolas, são centrais à filosofia  e compartilhadas com outras práticas intelectuais. É por causa de características compartilhadas que a  filosofia pode às vezes andentrar em outros domínios. Isso pode ser feito de modo superficial, como na produção de exemplos de outras práticas para questionamentos filosóficos. Mas também pode ser feito de modo mais profundo, como na concepção de perguntas genuínas e, quem sabe, até mesmo no oferecimento de respostas e intervenções.  A ideia é que, de acordo com os nossos interesses e necessidades, podemos explorar outras práticas e aprender com elas.

Em resumo, então, se a filosofia é uma prática, ela é normativa, situada e, na falta de um termo melhor, transdisciplinável. Eu disse acima que tenho certas ressalvas sobre a possibilidade de oferecer um conceito abrangente e informativo de filosofia por causa dessas qualidades—em especial por causa da contingência acarretada pela noção de prática. Ainda assim, eu pretendo oferecer o esboço de ideia para capturar de modo minimamente informativo o que há de distintivo na prática filosófica. É a ideia de filosofia como prática de esclarecimento, o que a distingue de outros tipos de prática intelectual, como práticas de descoberta, de comprovação e de intervenção (que seriam típicas das ciências), práticas de expressão artística, e práticas de preservação de cultura e modos de vida pelas narrativas tradicionais. Mas por que prática de esclarecimento? Minha suspeita fundamental é que quase tudo que fazemos é muito confuso. Mais precisamente: quase nada é completamente transparente para nós, mesmo os produtos da nossa própria atividade intelectual. A tomada de decisões morais é confusa, como funciona a ciência é confuso, as dinâmicas sociais e políticas às quais estamos sujeitos são confusas, o nosso gosto ou desgosto pela arte é confuso. Até o modo como nós raciocinamos para nós mesmos é confuso. Nós somos criaturas confusas por excelência: primatas criativos e inteligentes demais e ao mesmo tempo insuficientemente esclarecidos para entendermos de imediato aquilo que nós mesmos fazemos. Mas disso não se segue que não podemos tentar. Aliás, é exatamente por causa disso que precisamos tentar. Quero dizer: é em virtude das limitações inerentes à condição humana, associadas à nossa criatividade quase irrestrita, que precisamos e sempre vamos precisar de tomar algum distanciamento das nossas atividades para tentar pensar com calma sobre elas. Isso requer empregar técnicas diferentes daquelas que empregamos na condução daquelas atividades. Esse processo de distanciamento, reflexão e tentativa de esclarecimento é o que eu entendo por filosofia. Pode-se dizer tratar-se de um nível "meta" de atividade intelectual, isto é, uma meta-atividade, um pensar sobre o pensar. Nesse caso, eu teria cuidado para não tomarmos esse processo de distanciamento provisório como uma separação. É por essa razão, como eu disse acima, que pensar a filosofia como um tipo de prática também permite manejar as suas fronteiras de acordo com a nossos interesses e necessidades, tornando mais porosa a distinção entre o nível meta e os níveis basais—a ciência, o senso comum, a arte, etc., isto é, aquilo sobre o que queremos ter mais esclarecimento.

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