Reflexões filosóficas sobre a força


ser e parecer nos treinos de resistência


August 27, 2025

Há uma confusão acerca das diferenças entre força e hipertrofia. Essa confusão nasce no senso comum, em virtude da falta de delimitação do predicado 'ser forte' na linguagem não técnica—uma confusão que afeta até mesmo os frequentadores assíduos de academias. Na visão leiga, se a pessoa possui uma musculatura bem desenvovlida, ela é forte. E, do mesmo modo, se ela é forte, então ela tem grandes músculos. Porém, força e hipertrofia são fenômenos diferentes—inclusive, é possível parecer forte sem efetivamente ser forte. Mais precisamente, a hipertrofia não necessariamente faz com que a pessoa seja capaz de mover-se contra uma resistência suficientemente pesada. A existência desse tipo de caso, em que a aparência de força não é acompanhada da força, demonstra que, quando se trata de treinos de resistência, há uma diferença substancial entre ser e parecer. Essa é uma das distinções filosóficas mais fundamentais e interessantes, e não é o único tema para reflexão filosófica que a preparação como atleta de força tem me suscitado nos últimos meses.

Se você entende o básico de fisiologia e treinos de resistência, pode pular este parágrafo. Em resumo, a hipertrofia é o crescimento da musculatura, que pode ocorrer tanto pela multiplicação e pelo aumento das miofibrilas (componentes das células musculares responsáveis pela contração), a chamada hipertrofia miofibrilar, quanto pelo aumento do volume do sarcoplasma, que é o líquido contido nas células musculares, donde o nome de hipertrofia sarcoplasmática. Para desencadear essas adaptações fisiológicas, você deve submeter reiteradamente os músculos que você quer desenvolver à tensão mecânica. Você faz isso praticando exercícios em que o músculo em questão atua como agonista primário ou secundário. Isto é, enquanto ele contrai, ele move a carga do exercício ou ajuda a movê-la (já um músculo atua como antagonista em determinado exercício quando ele se estende enquanto o agonista contrai e vice-versa). Em resposta à tensão mecânica à qual você submeteu o músculo em questão, ele se adapta aumentando de tamanho para dar conta dessa nova demanda de esforço. Para continuar crescendo, você aumenta a tensão mecânica, seja colocando mais carga naquele exercício (aumentando a intensidade), acrescentando mais séries (aumentando o volume) ou trabalhando esse músculo mais vezes na semana (aumentando a frequência), ou uma combinação desses fatores. De um modo geral, isto parece certo: quanto mais perto você chega da falha mecânica—o ponto a partir do qual não é mais possível contrair um músculo contra uma  resistência constante—maior o estímulo que esse músculo recebe, o que seu corpo processa como uma demanda por mais adaptações e, se tudo correr bem, gera mais hipertrofia.

Quando você treina para ganhar hipertrofia, portanto, o segredo é mover uma carga, qualquer que seja ela, até que ela pareça muito pesada. No limite, atinge-se a falha mecânica, quando aquela resistência torna-se, na sua percepção subjetiva, extreamente pesada, mesmo que no começo daquela série ela estivesse perfeitamente movível. Depois disso entram as outras variáveis, como sono e alimentação, mas isso não importa no momento. Note que eu falei "qualquer que seja a carga". Visando a hipertrofia, você pode começar com uma carga muito pesada e fazer poucas repetições. Isso vai funcionar. Você também pode começar com uma carga substancialmente mais leve e fazer muitas repetições. Também vai funcionar.

Embora os dois caminhos descritos acima levem à hipertrofia, apenas o primeiro caminho leva ao ganho de força. Porque a força, como eu defini no começo deste texto, é uma habilidade de mover-se contra uma resistência. Mover uma resistência insubstancial até que ela pareça pesada não vai te deixar mais forte, mas vai te deixar mais apto a mover cargas leves por muitas repetições. Mas mover uma resistência alta pode ter como o efeito o ganho de força.


Aos 36 anos e natural a vida toda, esse talvez o limite da minha hipertrofia
Pode ter como o efeito o ganho de força, mas não necessariamente—pelo menos a partir de um ponto, e é aí que as coisas começam a ficar interessantes. Para entender isso, primeiro tenha em mente que a força é uma habilidade. Uma habilidade de mover cargas pesadas. Para desenvolver essa habilidade, assim como qualquer habilidade, você precisa praticá-la recorrentemente. "Quão recorrentemente?" Muito recorrentemente!

Como ilustração, considere o seguinte. Eu comecei a treinar powerlifting, que é um esporte de força centrado em três levantamentos básicos (agachamento, supino reto com barra e levantamento terra), oficialmente no dia 24 de março deste ano. Desde então, venho me preparando para minha primeira competição, que ocorrerá daqui a 4 semanas. Posso dizer com precisão o número de séries de agachamento que eu fiz desde aquele dia até o momento em que escrevo estas palavrasa (27 de agosto): 156 séries durante 23 semanas de treino—sem contar os aquecimentos, o que provavelmente dobraria esse número. Durante maior parte desse tempo, treinei agachamento duas vezes por semana. E em todos os treinos, todas aquelas séries e todas as repetições foram realizadas aproximadamente no mesmo padrão, pois apenas assim que se desenvolve a técnica na execução.

Porém, um exercício multiarticular como o agachamento demanda um alto gasto energético, sobretudo quando movimentamos uma carga objetivamente pesada. Para realizá-lo com tanta frequência, isto é, duas ou mais vezes por semana, é preciso que a musculatura se regenere a tempo do próximo treino. Isso é especialmente importante para que se possa progredir de carga entre uma sessão e outra—pois, se o atleta ainda estiver fadigado, não será possível recrutar as unidades motoras com a mesma eficiência, o que causaria uma estagnação ou mesmo um regresso. Desse modo, não adianta atingir a falha, ou mesmo a proximidade da falha, em todas as sessões de treino, pois a falha significa também que o atleta exauriu momentaneamente sua capacidade de movimentar aquela carga, e o tempo de recuperação nos dias seguintes àquela sessão acaba sendo muito maior.

Eis um aspecto aparentemente paradoxal do treino de força: você ganha força trabalhando uma carga pesada até que ela pareça leve. Claro, a carga pode ser objetivamente pesada, ou pesada em comparação com a carga que o frequentador médio de academia movimenta, mas ela não vai parecer pesada se você tiver preparo e técnica para movimentar cargas ainda maiores—ou, simplesmente, se você for realmente forte. Isso significa que você atesta o ganho de força ao sentir que uma carga se torna mais leve de acordo com o avanço do seu treinamento ao longo de meses, o que eu acho filosoficamente fascinante. Ao contrário do que muitas pessoas imaginam, portanto, powerlifters não treinam no seu limite o tempo todo, mesmo que a carga movimentada pareça absurda. Na verdade, nós raramente usamos toda nossa força em um treino usual.
RPE 8,5?
Nós temos um termo técnico para desginar a percepção da dificuldade relativa para movimentar uma carga: percepção subjetiva de esforço, ou RPE da sigla em inglês. Essa é uma escala de 1 a 10, em que 10 significa que você percebeu aquele esforço com dificuldade máxima, sem ser capaz de fazer mais nenhuma repetição com o peso em questão—isto é, atingiu a falha naquela execução. Se o RPE de uma execução foi 9, então você conseguiria fazer mais 1 repetição. Se foi 8, você conseguiria fazer mais 2, etc. Com isso em mente, ao fim de cada série dos meus lifts principais, eu anoto o RPE daquela série para aquele peso e o número de repetições feitas. Se pareceu leve demais—isto é, se o RPE foi menor do que 7, o que significa que eu podeira fazer 3 ou mais repetições com aquele peso—meu trienador prescreve um aumento expressivo na semana seguinte. Se foi pesado demais, entre 8,5 e 9, a progressão de carga não será expressiva. Se eu estou batendo em 9,5, talvez seja a hora de fazer um deload.

E qual seria a relação entre força e hipertrofia? Como deve estar claro, elas não a mesma coisa nem são treinadas do mesmo modo, mas não é como se elas fossem antagônicas. Do ponto de vista fisiológico, treinos de força não são excelentes para gerar mais hipertrofia porque, como mencionei, encerramos as séries com certa distância da falha mecânica. Treinos de força otimizam a hipertrofia para recrutar o maior número de unidades motoras dos seus músculos de uma só vez. A hipertrofia, portanto, pode ser entendida como a potencialidade de exercer força. Com o tempo e com a prática, os sinais que os neurônios motores carregan do sistema nervoso central aos músculos se tornam mais eficientes no comando motor (por um processo chamado mielinização), e o atleta consegue mover mais carga de uma única vez. Por isso que ao treinar com cargas leves e muitas repetições, não se produz muito ganho de força (mas se pode ganhar hipertrofia), diferentemente de treinar com cargas moderadas e altas com poucas repetições. Além disso, ao desenvolver uma técnica mais refinada de execução, como eu fiz depois de tantas sessões de agachamento no exemplo acima, aprende-se a acionar apenas os agonistas primários e secundários daquele exercício, isto é, sem desperdiçar energia enviando sinais de contração para os antagonistas ou para músculos que não têm nenhuma função naquela execução. Por isso que todo atleta de força tem uma rotina de execução de determinado exercício que ele repete quase identicamente sempre, é tanto um ritual quanto uma pré-ativação motora que garante a otimização do sinal motor. Esses são elementos extra-hipertróficos que são essenciais ao treino de força.

Uma última constatação filosoficamente interessante: note que a avaliação do RPE de um exercício requer perceber (não julgar, são coisas diferentes!) quantas execuções a mais eu poderia fazer sem ter de fato feito. Ou seja, durante a execução de um exercício, eu percebo diretamente, com base na sensação de dificuldade daquela execução, quantas repetições a mais eu conseguiria fazer com aquele peso, mesmo que eu não as faça. Aprender a perceber isso, além de um exercício de honestidade para consigo próprio (pois eu poderia mentir que tudo foi mais fácil do que de fato foi e subir todas as cargas desmedidamente para saciar meu ego), é também um tipo muito refinado de autoconhecimento corpóreo. Esse autoconhecimento consiste em perceber—e, novamente, não é algo que eu julgo deliberadamente ou infiro com base em alguma outra coisa—algo que essencialmente não ocorre, mas poderia ocorrer. Do ponto de vista fenomenológico, isso é muito parecido com o conceito de protensão, o aspecto futuro, informado a partir do fluxo temporalmente estendido da nossa experiência.

Essas são algumas das reflexões filosóficas que têm me ocorrido a partir dos treinos de força. Esses são aprendizados importantes que enriqueceram minha concepção de conhecimento de si. Escrevi um pouco mais sobre isso num artigo publicado ano passado (aqui), mas gostaria de explorar mais esses assuntos no meu livro Elogio das Proezas Físicas que está atualmente sob avaliação pela EDUFBA.

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