Como eu pesquiso filosofia II, o retorno


June 06, 2021

Depois do sucesso do post anterior (!), e depois de conversar com  alguns colegas que gostaram do que eu escrevi, me dei conta de que tinha faltado algumas dicas importantes. Então decidi fazer um novo texto complementando aquele.

A colega Verônica Campos me chamou a atenção para o fato de que existem perfis diferentes de escritores/pesquisadores de filosofia, e que algumas pessoas vão ter mais dificuldade se tentarem seguir as minhas dicas. Por isso eu também deveria ter avisado na postagem anterior que há bastante idiossincrasias na minha metodologia, e provavelmente ela não vai servir pra todo mundo. Mas o mais interessante do comentário da Verônica é que algumas pessoas fazem uma distinção forte entre rascunho e texto final e outras pessoas, como eu, não fazem essa distinção, ou, como ela, fazem uma distinção mais fraca. Isso era algo que eu tinha esquecido completamente de mencionar. Eu não saberia falar pelas razões do primeiro grupo (nunca foi meu modo de proceder), mas eu posso dizer que, pra mim, faz sentido não diferenciar fortemente rascunho de texto final porque o processo de edição (ou lapidação, como fala Verônica), é constante e muitas vezes mais pesado do que a própria escrita. Então, eu comento o seguinte, mais como um aviso que vale retroativamente do que como uma sugestão propriamente dita: se você tem dificuldade na lapidação de um texto que você já escreveu, ou que está escrevendo, talvez nenhuma das minhas dicas funcione. Eu sugiro, em todo caso, trabalhar a virtude da edição.

Conversando com a Verônica eu me lembrei de uma segunda observação, que meu colega César Schirmer chama acuradamente de "kill your darlings": não tenha medo de apagar o que você escreveu. Jamais confunda o valor emocional decorrente do empenho que você depositou na redação de uma passagem ou até mesmo de um texto todo com o valor objetivo desse material. Em outras palavras: às vezes a gente não quer deletar algo porque sente que a coisa custou pra ser feita, e não porque ela tem um dever real naquele texto. Virtualmente todo texto que eu já escrevi se beneficiou (ou beneficiaria se eu tivesse mais empenho) com fazer a limpa em algumas passagens. Claro: é bom sempre ter um backup, uma versão anterior à qual você pode recorrer caso tenha porventura perdido algo importante.  Às vezes, inclusive, ao remover de um texto o que não é diretamente importante para aquela discussão, você se abre caminho para outros textos com outros enfoques a partir desses materiais.

Crisóstomo de Souza, meu colega de departamento e companheiro de espírito pragmatista, chamou a atenção a algo importante. Existe um framework metafilosófico de fundo que me permite trabalhar com certa liberdade, como que flutuando de texto para texto, sem me prender muito à reconstrução das ideias de um(a) autor(a) ou do seu contexto histórico. Eu esqueci de comentar porque já incorporei completamente na minha vida o fato de que eu trabalho em uma perspectiva temática. Ou seja, eu trabalho com o problemas filosóficos (e, esperançosamente, com suas soluções também) em primeiro lugar, e apenas em segundo lugar com a reconstrução de pensamentos filosóficos. Então todo o trabalho que eu tenho na interpretação de um posicionamento de alguém é apenas usado como meio para um objetivo externo a essa interpretação. Por isso eu falei em "liberdade" para pular de um texto a outro. Às vezes o que eu preciso é de uma passagem, de um conceito, de uma crítica, da referência a um resultado empírico etc., e isso me permite usar aqueles materiais para os meus propósitos enquanto escrevo. Por isso que quem está mais inserido numa perspectiva historicista ou exegética de filosofia pode não achar nenhuma dessas dicas importantes (no offense taken). Como falei publicamente para Crisóstomo no meu facebook, aliás: minha única experiência estritamente exegética em um nível profissional foi muito desgastante intelectualmente e eu criei uma espécie de aversão. Mas que conste que isso é um problema pessoal, antes que alguém se ofenda, e não um juízo objetivo de superioridade de um jeito ou de outro de fazer filosofia.

Uma coisa que é relativamente recente na comunidade filosófica brasileira, mas que está mais bem instituída no exterior, é a colaboração ou coautoria. Já faz alguns anos que tenho me arriscado a escrever textos coautorados, e uma coisa que eu aprendi é que cada colaboração tem um modo de funcionamento próprio, então não saberia dar uma indicação sobre qual o melhor modus operandi para esses casos. O que eu indico é tentar fazer mais trabalhos colaborativos por uma razão simples: o texto já passa por uma avaliação crítica mais diversa durante a própria produção. Um texto escrito no modo solo tem, pelo menos antes da sua publicização ou submissão, apenas uma pessoa para criticá-lo (o autor). Um texto colaborativo passa desde o princípio pela avaliação de duas pessoas, e isso já aumenta a qualidade do produto final.

Aliás, ao submeter seu artigo para uma revista especializada, não se desespere. Muito provavelmente seu texto vai receber críticas, algumas vão ser justas e vão ajudar seu trabalho, algumas vão ser ruins e você vai constatar que é melhor ignorá-las. Eu admito que tenho muita dificuldade com essa parte do processo, mas a cada nova submissão/revisão fica um pouco mais fácil. Nunca é exatamente prazeroso receber um recomendação de revisões substanciais—nem se fala de uma rejeição. Mas esse tipo de coisa acontece até com pessoas que entendem muito bem de determinado assunto. O segredo de não se abalar muito é tentar não personalizar as críticas. Os pareceristas estão comentando aquele fragmento do seu trabalho, não a sua pessoa—na maior parte dos casos, eles nem sabem quem é você!

Bom, por enquanto era isso. Se faltar alguma coisa, eu faço uma trilogia.



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